A filosofia de Michael Ende
Zine contendo 3 textos sobre as obras de Michael Ende, autor de A história sem fim.
A filosofia de Michael Ende
Michael Ende nasceu em 12 de novembro de 1929, na pequena cidade de Garmisch-Partenkirchen, na Alemanha. Filho do pintor surrealista Edgar Ende, cuja arte foi banida pelo regime nazista como "degenerada". Durante a juventude, Michael Ende entrou para um grupo de resistência estudantil contra o nazismo. Depois da Segunda Guerra, ele se tornou um crítico do autoritarismo, o que fica evidente na sua obra.
Ele é mais conhecido por ser o autor do livro A História Sem Fim (1979), que teve uma versão cinematográfica em 1984. Apesar do filme ser lembrado com carinho por muitas pessoas, o próprio Ende pediu que tirassem seu nome dos créditos, e é fácil entender o motivo: o filme corta o livro pela metade, excluindo o cerne da sua história. A continuação, História sem Fim 2, não fez jus ao nome, se afastando ainda mais da história do livro.
Embora sua obra literária tenha encantado leitores de todas as idades, sua contribuição filosófica é pouco discutida. Durante sua estadia na Itália e no Japão, Ende engajou-se em discussões sobre questões da filosofia política e da filosofia da economia, chegando a defender a abolição do dinheiro a partir da proposta do economista anarquista Silvio Gesell.
As obras de Ende nos transportam para universos surreais que convidam a pensar sobre a reprodução do cotidiano. Ele faleceu aos 65 anos, em 28 de agosto de 1995, mas permanece inspirando pessoas a valorizar a imaginação, a utopia e os sonhos de mudança social radical. Michael Ende também explorou os limites da psicologia, do existencialismo e da crítica ao capitalismo.
Neste livro eu pretendo analisar a obra de Ende a partir de sua crítica ao capitalismo. Essa crítica fica mais evidente em obras como Momo e o senhor do tempo (1973). Momo é uma garota com o dom de "ouvir as pessoas", que com a ajuda de uma tartaruga mágica, enfrenta estranhos “homens de cinza” que consomem o tempo das pessoas ao fumar incessantemente charutos feitos com flores do tempo. Eles convencem as pessoas que "tempo é dinheiro", e isso acaba transformando a pequena cidade num centro comercial agitado, onde as pessoas não têm mais tempo para conversar. A mensagem de Ende é nítida: "Tempo não é dinheiro, tempo é vida".
Momo é facilmente interpretado como uma crítica à aceleração do fluxo do tempo na modernidade. Mas a mensagem de Ende não se resumia a um elogio simplista à vida em pequenas cidades. Sua preocupação era com a perda de um elemento que ele julgava essencial, que também está presente em A história sem fim: a capacidade de sonhar, de imaginar, de pensar outros mundos possíveis. Para ele, essas são as condições para a reflexão filosófica sobre o mundo em que vivemos.
A crítica teórica de Ende ao capitalismo é melhor explicada em entrevistas e conferências que ele fez no Japão. Minha análise parte do conteúdo que eu encontrei na internet, principalmente num site chamado Jardim filosófico de Miguel, que não está mais disponível, mas cujo conteúdo eu salvei num arquivo de texto, muitos anos atrás. Muito desse material é difícil de encontrar, portanto se trata de uma análise a partir do que foi traduzido do japonês para inglês, ou de comentários sobre entrevistas e palestras que ele deu no Japão.
As influências de Ende são peculiares. Ele foi entusiasta da antroposofia de Rudolf Steiner, fundador da pedagogia Waldorf e da agricultura biodinâmica. Por outro lado, também admirava as ideias do economista Silvio Gesell, anarquista e fundador da Freiwirtschaft, uma escola econômica pouco discutida, e provavelmente controversa.
O livro Fantasy, Politics, Culture (1982) é um registro de conversas e debates públicos de Ende com diversos intelectuais e artistas, onde ele diz que as pessoas estão perdendo a capacidade de sonhar com um mundo que elas realmente desejam porque estão constrangidas por um modelo "economicamente viável":
"O século XVI viu o surgimento da ideia de medir tudo pela quantidade. Somente o que pode ser contado ou medido é autorizado e essa tendência leva à negação total da realidade sobre a qualidade, uma vez que a qualidade não pode ser avaliada pelo pensamento quantitativo. Você não pode medir a beleza, mas ela existe, intimamente relacionada com aqueles que a reconhecem".
A importância do que não pode ser medido ou afirmado objetivamente é uma das ideias centrais de Ende. Ela é expressa, por exemplo, em O espelho no espelho (1984). Isso também é visível em A história sem fim, onde o reino de Fantasia é refeito a partir de uma interferência do leitor na história. A partir dessa ideia, Ende desenvolve uma crítica à sociedade industrial e à "produção de sociedades" segundo o método científico:
"A razão pela qual a ciência natural de Goethe, que tentou reconhecer a 'qualidade' da natureza, foi derrotada pela de Newton, que se baseava no mensurável, é que aplicando a de Newton conseguimos desenvolver a variedade de tecnologia que produziu tantos produtos industriais que desfrutamos agora, enquanto a de Goethe é incapaz de fazê-lo. Mas a falha de hoje é a suposição de que podemos 'produzir' sociedades, planos de cidades, de comportamento, de felicidade e de paz mundial aplicando esse pensamento demonstrativo".
Como a sociedade é mais complexa do que aquilo que pode ser compreendido pela ciência, deixar a ciência organizar a sociedade seria reduzir a sociedade a algo semelhante ao que os "homens de cinza" pretendiam: submeter a vida a um critério de eficiência.
Ende chamou isso de "deserto da civilização", e acusou o materialismo econômico de produzir o contrário do que pretendia: "Parece-me que o que se chama racionalidade e iluminação científica no Deserto da Civilização produziu até agora o que é perfeitamente contrário ao que as pessoas com racionalidade e honestidade exigem". A modernidade excluiu um elemento importante da experiência humana, "tornando o mundo literalmente desumano". Ende defendeu uma ciência mais humana, "que supera o intelectualismo não pela 'irracionalidade', mas analisando e enxergando sua autocontradição e levando pessoas de volta ao campo da experiência".
Uma das utopias de Ende era pensar num mundo sem dinheiro. Ele criticou os pressupostos da economia monetarista e defendeu que o dinheiro poderia ser "desfeito". Ende fez críticas ao regime soviético: "As duas principais potências econômicas opostas nos últimos 50 a 70 anos eram, de fato, gêmeas: capitalismo privado e capitalismo de estado, mas na verdade nunca experimentamos um sistema econômico não capitalista como tal. Acho que o mérito de Marx é que ele apresentou muitos conceitos que tornaram possíveis críticas reais à vida econômica".
Seu principal problema com o marxismo era o materialismo econômico, a partir do qual ele julgava que seria impossível compreender a importância de certos valores humanos. No livro Einstein Roman 6 (1991), baseado num programa de televisão que foi ao ar somente no Japão, ele diz: "por que eles têm tanto medo de nossa irracionalidade (das crianças e da literatura de fantasia) enquanto o que é feito com sua racionalidade não lhes incita nenhuma preocupação? Eles não têm medo de sua racionalidade. Pelo contrário, até se orgulham dela". Sua crítica era dirigida para uma racionalidade que diminui a liberdade e a dignidade humana a "superstições selvagens e não-científicas". Em resumo, é o conflito entre racionalidade instrumental e experiência sensível.
Nesse mesmo livro, Ende diz que "a terceira guerra já começou, a gente apenas não percebeu", e demonstra ter uma visão bastante pessimista em relação à ecologia: "Os ecologistas repetem que devemos diminuir o consumo e simplificar nossas demandas (..) mas eles não notam sequer o fato de que o sistema econômico atual se baseia no pressuposto de que o consumo continuará aumentando infinitamente. (...) De qualquer forma, somos forçados a escolher entre duas opções: a catástrofe social ou a ecológica".
O eco-anarquista Edward Abbey ficou conhecido pela frase: "crescer por crescer é a ideologia da célula cancerígena". Ende disse algo semelhante: "Parece-me que o sistema financeiro atual tem algo muito semelhante ao câncer humano: obrigação de crescer". Em Talk with Ende (1986), ele afirma que o capitalismo "não pode durar para sempre. Não apenas porque é contra a nossa moral, mas porque esse sistema é insustentável".
Em Einstein Roman 6 também encontramos uma crítica ao progresso: "não sabemos que, de fato, somos cada vez mais pobres, nosso mundo interno está ficando tão vazio que estamos caminhando em direção à desertificação interna". Embora Ende não tenha usado o conceito de civilização no mesmo sentido, John Zerzan expressa uma ideia muito parecida, em Correndo no vazio (2002): o desenvolvimento tecnológico ocorrendo junto com o empobrecimento da experiência humana.
A ciência que Ende defendia conseguiria reintegrar o objetivo e o subjetivo, o que seria algo "completamente absurdo, tanto do ponto de vista econômico quanto político", no sentido de que não combinava de modo algum com o pensamento capitalista. Seria uma ciência guiada por valores éticos: "nossa responsabilidade deve ser incluída em nossos estudos".
Também é visível uma crítica à tecnologia. Quando comenta sobre a importância de permitir que as crianças errem e aprendam com seus erros, Ende diz:
"O mundo atual é totalmente construído sobre a teoria de causa e efeito. A tecnologia não funcionará bem se não se basear em tal teoria. No entanto, essa ideia não pode ser aplicada a nós, seres humanos. Temos alguns aspectos que são incompreensíveis desse ponto de vista... Se tentarmos nos analisar, excluiremos nossa capacidade de dar 'palpite'".
O palpite está relacionado à intuição e à liberdade humana:
"É a questão de saber se nossa liberdade é reconhecida ou não. Se houver liberdade, você não poderá explicar todos os nossos atos pela teoria de causa e efeito. Por outro lado, se você aplicar essa teoria aos seres humanos, não haverá liberdade nem criatividade. Nossa criatividade é produzir algo totalmente novo sem estar vinculado à restrição da teoria de causa e efeito... E eu acredito que é dentro dessa criatividade que estão os valores dos seres humanos".
A violência é resultado de reprimir a criatividade e a liberdade: "Tornamo-nos violentos porque sentimos que nossa liberdade é tirada", e não por excesso de liberdade.
"Na sociedade moderna, baseada na teoria de causa e efeito, somos proibidos de correr o risco e nos sentir no meio de um impasse. A única maneira de fazer isso hoje em dia é se tornar antissocial. (...) Parece que o verdadeiro poder do crescimento, que nos torna humanos, agora é punido pela sociedade moderna, desencorajando-nos cada vez mais. Não ousamos, somente nos adaptamos ao ambiente. Olhe para as escolas. Há vinte anos atrás os estudantes ainda eram rebeldes. Agora eles nem resistem... Eles não pensam na direção que estão seguindo".
O capítulo quatro de Talk with Ende é ainda mais direto: "Minha preocupação urgente é como libertar os seres humanos da obsessão por 'crescimento econômico'". Neste capítulo, ele fala também do iminente fim do petróleo e como isso implica na insustentabilidade de um sistema baseado em crescimento. "A batalha no mundo econômico de hoje não é para aumentar a produtividade, mas para ampliar o mercado. Não se trata de como fazer, mas de como 'jogar fora' os produtos".
Em Three Mirrors (1989), uma coletânea de conversas com intelectuais japoneses, Ende comenta sobre a relação complexa entre industrialização e a colonização cultural do Japão. "Indústria e tecnologia são o resultado do pensamento europeu, em último grau. (...) o Japão já teve que desistir do desenvolvimento de sua própria cultura para se dirigir à industrialização. (...) Essa contradição interna é muito maior no Japão do que na Europa".
Porém a "universalização" do modo de vida europeu não é uma coisa necessariamente boa sequer para o próprio europeu. "Quanto mais os seres humanos se aproximam, mais unificado nosso mundo se torna, e quanto mais crescimento compartilhamos, maior o risco de que tudo se torne o mesmo e de que percamos nossa própria identidade". Na tentativa de resgatar essa identidade, as pessoas se guiam equivocadamente por uma visão idealizada das sociedades antigas e de suas raízes culturais.
A proposta de Ende, por mais otimista que pareça, é pensar numa sociedade que não está determinada pelas suas condições materiais e históricas, mas que, como a centelha de criatividade humana, é capaz de quebrar a cadeia causal de eventos, ou seja, provocar uma mudança para além da lei de causa e efeito, criando algo verdadeiramente novo.
Ende fazia uma crítica à religião e uma defesa à espiritualidade da liberdade humana radical. "Diante de tal situação [econômica e ecológica], temos apenas duas opções: seguir o caminho atual, temendo que isso acabe com o mundo inteiro, ou parar, temendo o enorme desemprego e o colapso econômico". Essa situação aparentemente sem saída leva à procura de soluções religiosas. Mas a saída, para Ende, não poderia ser religiosa.
A economia capitalista está, em certo sentido, fundada numa visão religiosa. Seria preciso uma crítica à religião para criticar o capitalismo. A relação entre religião e capitalismo é explorada mais diretamente em Espelho no espelho, onde há uma catedral feita de tijolos de cédulas, que realiza o milagre da multiplicação do dinheiro, e os fiéis são chamados de acionistas. Estes fiéis estão presos numa estação de trem da qual nenhum trem jamais parte, e a catedral, iluminada por velas, está condenada a ser consumida pelas chamas.
Ende teve a ideia de construir tais simbologias a partir do método surrealista de seu pai, o pintor Edgar Ende, que por sua vez era diferente do método de Dali ou da teoria de André Breton:
"Meu pai tinha sua própria técnica. Ele permanecia sozinho em seu ateliê, esvaziando sua consciência e criando seu despertar pleno. Quando ele estava realmente acordado, algumas imagens surgiam em sua consciência vazia, com traços nítidos... (...) Surrealistas franceses como Dali tentavam expor o que se movia na área subconsciente. Meu pai, ao contrário, pensou em redescobrir a consciência mítica, usando as formas modernas. O que ele descrevia não era a combinação acidental bizarra que vem do caos. Ele tentou mostrar um certo símbolo."
Esta consciência que se comunica a partir dos símbolos nas obras de Edgar Ende não estava desprovida de valores, e não era, segundo Michael Ende, o inconsciente freudiano, mas realmente uma outra consciência, mais profunda, que normalmente nós ignoramos. Ele poderia estar falando de forças sobrenaturais, que são comuns nos seus contos. Numa outra discussão no mesmo livro, ele diz:
"Neste universo, existem muitas outras existências intelectuais além dos seres humanos. (...) Essas existências são imperceptíveis para os cinco sentidos e também é difícil distinguir se são boas ou más... É verdade, no entanto, que os seres humanos vivem e têm contato com elas, sabendo que existem existências invisíveis ou não. (...) Por que as trevas não podem ser tão santas? Assim como a luz é? Nenhuma cor pode existir sem os dois. O mundo que consiste apenas de luz é invisível e imperceptível, assim como o mundo das trevas."
Mas é possível que ele estivesse falando da consciência não-humana da natureza, como transparece num episódio peculiar, em que a equipe de tevê do programa Einstein Roman estranha o modo como Ende trata sua oliveira (árvore), como se fosse uma pessoa:
"Elas [as oliveiras] me ajudam quando escrevo. (...) Aqueles que têm outro olho na cabeça devem ver que as árvores não são a composição de elementos químicos, mas uma existência viva que habita comigo na Terra... Para resolver o problema ecológico, temos que ter uma relação interna com a natureza".
A expressão "relação interna" pode ter sido mal traduzida, então é difícil compreender sobre o que exatamente Ende está falando. Mas alguns outros trechos ajudam a compreender que Ende acreditava na comunicação com a natureza:
"A Natureza responde da mesma maneira que perguntamos a ela. Se fizermos perguntas à Natureza com reverência, ela nos dará uma resposta com admiração e respeito. Mas se a tratarmos como fechadura que estamos forçando a abrir, ela nos dará uma resposta violenta."
Chegamos, assim, ao Ende's last words (1999), ou "As últimas palavras de Ende", um documentário que foi ao ar somente no Japão, 4 anos após a morte de Michael Ende, retratando sua vida, obra e pensamento. Este programa se foca na relação entre Ende e a teoria econômica de Silvio Gesell. Gesell queria criar um dinheiro que expirava, isso é, tinha um prazo definido pra ser utilizado. Isso impedia que o dinheiro fosse acumulado ou usado para especulação financeira. Ende propunha algo semelhante, mas com um objetivo ecológico e moral:
"Portanto, suponho que devemos colocar o dinheiro novamente como um valor que corresponda à realidade do trabalho e dos bens. E para esse fim, todos devem pensar seriamente sobre o que é essencial e o que deve ser mudado no atual sistema monetário. Penso que esta é uma questão crucial que determinará se os seres humanos podem continuar sobrevivendo neste planeta ou não. O ponto é o reconhecimento de que o dinheiro que pagamos para comprar um pão em uma padaria e o que usamos no mercado de ações como capital são dois tipos diferentes de dinheiro".
Comentando sobre a posição de Ende sobre o dinheiro, o economista suíço H. C. Binswanger aparece no documentário dizendo:
"A maneira como as pessoas criam e aumentam o dinheiro é muito semelhante à dos alquimistas. A alquimia foi produzida pelo desejo das pessoas. Ele tenta fabricar ouro a partir de chumbo, e a maneira de pensar em transformar algo convencional como chumbo em algo precioso como ouro também é comum na era moderna, pois eles imprimem dinheiro usando juros. Esse dinheiro fica descontrolado, afetando o meio ambiente e nossa moral. Sempre que você pensa em dinheiro, não se esqueça da moral. Dentro do dinheiro estão questões morais".
Binswanger faz a relação entre dinheiro e magia. Esta magia equivale vender o futuro, ou ainda, consumir o tempo das pessoas:
"Os juros trazem problemas para o futuro. Se o valor das dívidas continuar aumentando, como agora, meu cálculo é que, mais cedo ou mais tarde, dentro das duas gerações, estaremos envolvidos num colapso econômico ou num colapso ecológico. Esse é o problema fundamental. Acredite ou não, você pode alcançar esse resultado com um computador. Apenas uma pequena quantidade de pessoas lucra com esse sistema. Hoje, nos EUA, 1% da população possui mais do que o restante (99%). Em resumo, alguns países são cada vez mais pobres, com sua ecologia sendo devastada. Por outro lado, muito poucos continuam sugando o enorme lucro. Este é o sistema econômico atual".
Voltando à questão do capitalismo como religião, o documentário mostra uma gravação em que Ende diz diretamente:
"Em qualquer cidade do mundo onde permanece a cultura antiga, catedrais ou templos ocupam seu centro de onde vem a luz da ordem. Atualmente, ela é substituída por prédios de bancos. Eu descrevi as cenas em que o dinheiro é adorado e as pessoas oram como se fosse algo sagrado na minha mais recente ópera baseada no "O Flautista de Hamelin". Alguém diz "O dinheiro é Deus", porque o dinheiro provoca milagres. Ele surge do nada e dura para sempre. Mas o dinheiro, ao contrário de Deus, foi produzido pelas pessoas. Se tem algo que não existe na natureza, mas que é totalmente produzido por seres humanos, é o dinheiro."
Citando Gesell, Ende diz que "o dinheiro deve desaparecer no final das atividades econômicas", como algo vivo. O resto do documentário, porém, tanto quanto pude entender, traz pessoas comentando sobre experiências com moedas locais. Um dos comentaristas chega a elogiar o New Deal americano, enquanto fala da ameaça comunista "espalhada pelo mundo", e o documentário prossegue com uma fala de Ende criticando o regime soviético. Parece uma tentativa de associar suas ideias com um tipo de capitalismo baseado em moedas locais, em vez de uma crítica radical à sociedade capitalista.
Independente disso, o programa termina com uma das citações mais memoráveis de Ende, que eu acho que resume bem o coração da sua crítica:
"Está nítido que as vítimas do sistema atual são as pessoas que vivem no Terceiro Mundo e na Natureza. Elas continuarão sendo exploradas sem piedade, para que esse sistema, que não pode funcionar sem consumir e crescer, possa continuar. Aqueles que aprendem com a história sabem que os eventos reais moverão os seres humanos quando a razão não o fizer. O que posso fazer a esse respeito é dizer para não repetirem o mesmo erro e pensar em novas ideias. E essa sociedade vai mudar. O mundo não vai acabar, mas os seres humanos sofrerão um grande trauma que durará séculos. Eles pensam que não podemos viver sem dinheiro, mas não é verdade. Nós podemos fazê-lo, porque nós o criamos."
A palavra não dita
Espelho no Espelho pode ser descrito como um “História sem Fim para adultos”. É uma sequência de construções simbólicas que mais parecem sonhos, mas que se interligam de maneira sutil. O livro é, como diz o subtítulo, um labirinto e um romance, embora seja aparentemente composto de contos curtos que não parecem estar ambientados no mesmo universo. A pessoa que lê pode chegar até o último capítulo com a impressão de que se trata de um livro de contos que não podem fazer parte de uma mesma história. Além disso, os capítulos não são numerados nem possuem um título. A única coisa que indica que se está em outro capítulo é a primeira frase escrita em letras maiúsculas. A ideia do autor parece ser realmente construir um labirinto de ficções surreais, cada uma seguindo estilos literários diferentes.
Ende cria uma experiência linguística que pode ser descrita como a tentativa de dar a quem lê uma imagem que só pode ser acessada por um estado limiar da consciência. Para isso, o autor faz uma composição literária ousada: ele quer que a pessoa se veja dentro do livro, como Bastian faz em A História sem Fim. A personagem principal não é uma pessoa real, mas quem lê, porque estes são os sonhos de quem está lendo. Por isso, a personagem principal não tem uma descrição definida. Ela é um conjunto de sentimentos humanos expressados por simbolismos oníricos.
Ao invés de nos identificar com a personagem, temos a impressão de que a personagem é fruto da nossa própria mente, algo produzido enquanto dormimos, e que suas narrativas são sonhos que tivemos, mas dos quais nos esquecemos. Por isso o livro transmite a ideia de que só a pessoa que lê pode completar o livro, com algo que somente ela pode saber. Na tentativa de conduzir a essa descoberta, o autor mistura linguagem figurada e literal de tal forma que não é mais possível distingui-las.
A primeira parte é narrada pelo personagem chamado Hor. Ele vive em completo isolamento, não ouve nada senão seus próprios ecos. Com quem ele fala, senão com ele mesmo, que é a pessoa que lê? Enquanto lemos o livro, nos encontramos andando no labirinto, como Hor, através de um cenário que ele modifica enquanto passa, porque come as paredes.
É claro que o autor não deixa de colocar suas preocupações pessoais no texto. A mais significativa destas preocupações talvez seja a crítica ao modelo econômico capitalista. Mas a causa de todos os problemas parece ser a falta de uma simples palavra.
Num dos capítulos, há um grupo de saltimbancos que está peregrinando pelo mundo em busca de uma palavra perdida. Eles eram atores que encenavam uma peça capaz de manter o mundo unido. Mas eles perderam uma palavra, e sem essa palavra a peça perdeu o sentido, e o mundo começou a se fragmentar. Segundo o texto, “Ninguém a havia roubado, nós tampouco a esquecemos. Ela simplesmente não estava mais lá”. Não se trata de uma palavra qualquer que o autor pretende fazer a leitora descobrir, mas um conceito essencial para resolver o que ele considera ser uma crise global real.
Há outras partes que se referem a tal palavra não dita. Uma delas é especialmente relacionada a um quadro do pai do autor. Há um patinador no céu, escrevendo uma palavra nas nuvens, mas as pessoas não reconhecem a palavra e não se importam com ela. Em outro capítulo, o personagem passeia por uma coleção de quadros, e cada quadro diz uma palavra, mas um deles não diz nada. O personagem pergunta a outra personagem:
“– Por que está calado?
– Ele já falou – respondeu ela.
– Porque eu não escutei?
– O senhor escutou muito bem. Mas só encontrará o dito em sua recordação.
– Mas eu gostaria de ouvir agora mesmo!
– Senhor – disse a moça em voz bem baixa, – como poderia tal acontecer enquanto o senhor deseja? Não desejar não faz diferença. Não fazer diferença significa olhar para o invisível e ouvir o que não foi dito.”
Há uma teoria sendo exposta em forma de arte literária. Um dos pressupostos dessa teoria é que os bons autores não passam diretamente sua mensagem, mas deixam a pessoa construir uma mensagem própria. A pessoa que lê hesita em pensar por si mesmo, e é isso que foi perdido. A palavra não dita, aquela que dá sentido a todo o texto, sempre esteve conosco, mas precisamos ser incentivadas a procurá-la e dizê-la.
Em A História sem Fim, o autor também dá uma lição sobre como ler livros enquanto nos instiga a escrever nossos próprios livros. Bastian, o personagem principal, também lê um livro chamado “A História sem Fim”. Na verdade, é exatamente o mesmo livro que temos em mãos. O livro contém a si mesmo. Bastian está contido dentro do livro, mas a princípio não se percebe como personagem, somente como leitor. Ele hesita em dar um nome à imperatriz, porque não acredita no seu poder de criação, como um leitor que também pode ser um autor. Por isso, ele relê a história sem fim, até perceber o que estava lá desde o começo: o tempo todo, a verdadeira história era sobre ele, e só ele pode renovar seu sentido e salvar Fantasia.
Espelho no Espelho também trata dessa hesitação. Ele descreve a lenta jornada da pessoa que lê e que precisa compreender-se como participante ativa da história; a única que pode dar sentido a ela; a única que pode completá-la com uma palavra. Enquanto isso, testemunhamos os males provocados pela ausência dessa palavra.
Esse mal é apresentado como sendo o Nada em A História sem Fim. Mas em Espelho no Espelho, esse mal é apresentado de modo muito mais sutil e perturbador. São os males sociais da sociedade de consumo, da guerra e da angústia existencial. Alguns personagens irão tentar envolver quem lê em suas tramas, para convencê-lo de que aquilo é só uma história, não é real, e, portanto, não é importante. Outros personagens irão tentar fazer o oposto, abrir os olhos de quem lê para o fato de ela está olhando para si mesma, como num espelho, e que esse espelho reflete algo real, e, portanto, a história é real e a necessidade de intervenção de quem lê é real e urgente. Como o que vemos a princípio não é a nós mesmas, mas somente ficções, ficamos como um espelho olhando para outro espelho. O que vemos parece o vazio, mas em cada camada de idas e vindas, é para nós mesmos que estamos olhando.
Criar novos mundos
Em Momo e o senhor do tempo, Michael Ende descreve um cenário em que as pessoas trabalham incansavelmente para pagar por um jardim que elas mesmas não têm tempo para desfrutar. De que adianta ter um gramado em casa, se você não pode ficar nele? Esta crítica sem precisar de diálogo, só na descrição do cenário mesmo. Esse estilo de narrativa pode ter relação com a influência que vem do pai de Ende, que era pintor. Ende busca construir imagens que comuniquem o âmago da sua mensagem usando palavras ao invés de pinturas. Mas mesmo usando palavras, ele nunca se esquece do fato de que a mensagem nunca está completa nas palavras. Ela precisa ser completada pelo elemento não-verbal.
A minha tese é que, na filosofia de Michael Ende, a palavra é uma ferramenta para tocar uma sensibilidade não-verbal. Tem a ver também com o modo como a Momo se comunica, e como a tartaruga se comunica. O poder de Momo vem da sua capacidade de ouvir, não de falar. O poder da tartaruga vem da sua capacidade de apontar para uma realidade, não de dizer algo sobre ela. Isso se relaciona com sua crítica à “razão instrumental” e sua defesa da utopia. Desse modo, podemos encontrar conexões entre Ende e Zerzan, que também questiona a cultura simbólica e defende a necessidade de uma utopia contra a dominação civilizacional.
Ende retrata a adoração do dinheiro como uma espécie de culto no qual o dinheiro é tratado como sagrado e milagroso. O dinheiro é uma criação alquímica: “tudo tem um preço” e, ao mesmo tempo, o valor parece estar sendo criado do nada. Repensar o sistema monetário atual exige um pensamento contrário: a criação de algo a partir do nada, isso é, a criatividade no sentido teológico, que implica na quebra da cadeia de causa e efeito, porém sem desconexão com a realidade. Por isso a relação com Silvio Gesell, que defendeu a ideia de que o dinheiro deveria envelhecer e desaparecer no final do processo econômico, não podendo ser acumulado. Pensar nessa possibilidade exige uma imaginação ousada.
“Só sei que tudo começou com Silvio Gesell, que foi um dos primeiros a rachar a cabeça. Ele fazia parte do Conselho Republicano da Baviera logo após a Primeira Guerra Mundial. Por exemplo, ele disse: “o dinheiro deve envelhecer”. Ele disse que as coisas tem que ser organizadas de tal forma que o dinheiro desapareça no final do processo econômico.”
Devido a sua relação com o Japão, as diferenças entre as perspectivas ocidentais e orientais sobre emoção e racionalidade aparecem em muitos de seus textos. A capacidade de equilibrar emoção e razão, como pregado pelo xintoísmo e pelo zen-budismo, oferece uma vantagem na distinção entre a utopia no sentido negativo, que está despregada da realidade, e a utopia no sentido positivo, que transforma a realidade. A desconexão da realidade é produto justamente da desconexão com a sensibilidade não racionalizável, tanto quanto com a capacidade de comunicar o conteúdo dessa sensibilidade aos outros.
“Talvez não haja nada mais irritante para o ocidental de mente lógica do que se envolver com alguém, quanto mais uma nação inteira, que não se comporta de uma maneira “razoável”. Para os ocidentais, as pessoas que permitem que suas emoções direcionem uma parte substancial do seu comportamento são suspeitas e não são de confiança para qualquer coisa de importância. Quando o emocionalismo vai além de um nível muito baixo nós o consideramos como insanidade. […] Talvez seja uma combinação de xintoísmo e zen-budismo que crie a capacidade do japonês de sentir-se confortável tanto com a emoção quanto com a razão, com a emoção não substituindo a razão. O fator zen no pensamento japonês lhes dá uma vantagem considerável em ser capaz de distinguir entre a realidade e o irreal ou o imaginado. O olho zen vê além da fachada, vê o núcleo da coisa.”
Por isso o conceito de tempo é central nessa narrativa. O tempo é justamente o inefável que se torna comunicável. A obsessão moderna com a produtividade e a mercantilização do tempo despresentifica o humano, isso é, o arranca o momento presente e desvaloriza as conexões humanas significativas, pois o tempo passa a ser consumido pelas demandas de uma sociedade acelerada. John Zerzan fez uma crítica semelhante. Ele aprofunda a tese sobre a domesticação do tempo por meio da tecnologia dos relógios, que quantificam um tempo que antes era experimentado de modo qualitativo. Zerzan argumenta que a tecnologia produz essa desconexão dos ritmos naturais e a uma distorção da nossa percepção do tempo.
Com a crítica ao tempo cronológico, vem uma crítica ao conceito de progresso. Essa crítica, em Ende, é nitidamente influenciada pela filosofia de Goethe.
“Na minha interpretação, a novidade é que reconheço que Goethe descreve a economia moderna como um processo alquímico, contra o qual ele insistentemente adverte: em especial quando falamos de criar ouro, criar dinheiro e do dinheiro criando experiências… Aqui reside uma parte essencial da mensagem de Goethe em Fausto: A alquimia não é uma superstição medieval. Está sendo praticada mais do que nunca, e hoje ela experimenta com o mundo como um todo, e este experimento alquímico gigantesco é chamado de “economia moderna”. (...) O que está acontecendo na economia hoje? Algo simplesmente “cresce” por algo que está “sendo adicionado”. Estranho apenas que em nenhum lugar algo está diminuindo. Esta é exatamente a alquimia, a continuação do processo de criação a partir do nada.”
Evidentemente, o capitalismo não cria valor a partir do nada, e sim a partir da exploração do tempo de trabalho das pessoas, isso é, do tempo de vida delas:
“As vítimas de nossos sistemas são os povos do Terceiro Mundo e a natureza. Eles têm que pagar a conta. Eles são explorados de forma imprudente para que o sistema continue funcionando. Para investir dinheiro do modo mais rentável possível, de modo que o capital cresça, eles têm que pagar a conta, pois, naturalmente, esse crescimento não vem do nada.”
Da crítica ao acúmulo de capital, vem uma crítica à tecnologia, como mecanismo pelo qual se extrai o tempo das pessoas. A não-neutralidade da tecnologia é evidenciada ao se observar quem a financia:
“Quem paga manda. Uma vez que todo o nosso desenvolvimento nas áreas tecnológicas e científicas estão sendo pagas por institutos econômicos e para fins militares, um tipo muito distinto de ciência natural tem sido criado e aplicado numa velocidade tremenda.”
Retornamos, então, a uma crítica ao conceito de razão e de ciência:
“Se a razão não motiva o homem a mudar alguma coisa, então ela virá por meio de eventos. Mas eu acredito que a humanidade vai levar um belo tapa na cara, que vai soar em seu ouvido durante os séculos vindouros.”
O pessimismo sobre a razão moderna se expressou, em Ende, como um medo da guerra:
“Apesar da palavra sagrada dos povos sobre banir a guerra para sempre, apesar do apelo dos milhões dizendo ‘guerra nunca mais’, contra todas as esperanças para um futuro melhor, devo dizer: ‘Se o sistema monetário atual, a economia de interesse, for mantida e continuar, então eu ouso dizer que não vai demorar 25 anos até que enfrentemos outra guerra ainda mais horrível’.”
O vazio em A História sem Fim é, portanto, a guerra. Ela é o que destrói a fantasia, os sonhos, as histórias. A filosofia de Michael Ende busca compreender o processo humano que produz a guerra, e o que ele poderia fazer, como escritor, para evita-la: criar novos mundos. Criar utopias. Alimentar sonhos. Trazer sonhadores para a realidade.
Referências:
ENDE, Michael. A história sem fim. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
________. O espelho no espelho. São Paulo: Marco Zero, 1989.
________. Momo e o senhor do tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
HIROTA, M. Y. Miguel’s Philosophical Garden. 2004. http://www3.plala.or.jp/mig. (Site fora do ar).